quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Os favores de Valkyria

Já haviam se passado 10 anos, mas de alguma ridícula forma, ele ainda mantinha vivo o hábito de apenas adormecer enquanto pensava naquela mulher, ou apenas sobre ela. Nada lhe causava melhor efeito quando se tratava dos sonhos iminentes na calada da noite, e mesmo que ao amanhecer não resgatasse uma lembrança sequer que pudesse lhe afirmar se aquele ritual noturno havia funcionado, ainda assim ele seguia executando seu mórbido plano, um tratado consigo mesmo, de só adormecer apenas após sonhar com ela.



Um dia, sem maiores porquês, ele faleceu.

Já fora do seu corpo e ainda convencendo-se de seu estado imaterial, percebeu a aproximação da figura estranha de uma mulher. Imaginou que aquilo pudesse se tratar da sua consciência post mortem, e tranquilamente escutou a dama recém-chegada lhe fazer algumas perguntas, sobre se havia compreendido de que ele não estava mais presente em seu plano original.

Ele assentiu e permaneceu observando as instruções daquela mulher.

– Deseja ver alguém antes de partirmos?

– Sim, eu gostaria de poder falar com outra pessoa antes de ir.

– É possível, mas apenas em forma de sonho. – Advertiu – Você estaria presente como parte de um devaneio, e nada garantirá que essa pessoa seja capaz de se recordar da sua mensagem ao acordar.

– Não tem problema, será apenas uma despedida.


Foi assim então que em um piscar de olhos sua consciência se viu presente frente à mulher que havia tornado suas noites menos frias nos últimos 10 anos. Ambos estavam sob um céu lilás escuro com muitas estrelas, sentados em um belo banco de madeira talhada, como nos seus primeiros passeios a um certo bosque que frequentavam em um tempo menos infortune.


(ele) – Você sabe, essa é a última vez que iremos nos ver...

(ela) – Eu sei. Pude notar assim que você se aproximou.

(ele) – Senti saudades, e por isso supliquei por uma chance para poder te dizer adeus.

(ela) – Fico feliz que tenha pedido isso, seria muito triste partir sem antes te falar algumas coisas.

(ele) – Achei que seria eu a pessoa com coisas a serem ditas... – Sorriu desconcertado, mas não estava surpreso, por isso concluiu com a já esperada pergunta. – Então... O que tem a me dizer?

(ela) – Eu preciso te dizer que teus 10 últimos anos pensando em mim foram inúteis. Eu vivi, me apaixonei e vivi ainda mais intensamente. Pude perceber também que em muitos momentos só me sentia triste por nunca ter te dito para seguir em frente. Nunca deveria ter te pedido para me esperar. Agora é a hora da partida e espero que isso te liberte de mim, assim como me isso também me libertará de você.

(ele) – Eu... Eu talvez precisasse ouvir isso de ti antes de nos despedirmos realmente. Muito obrigado, e... Adeus.


A bela paisagem se desfaria em instantes, tudo se desmancharia dando lugar aquele cenário anterior de nada absoluto, apenas ele, e sua anfitriã.

– Está satisfeito? Podemos ir? – Disse-lhe a Valkyria.

– Sim, não há mais o que fazer aqui... – Finalizou.


Momentos depois ele já estava habitando um lugar esmo, estranho, de muitos vultos irreconhecíveis. Depois de vagar por entre descampados abissais pressentiu pela primeira vez estar próximo a alguém que antes já havia visto em vida. E era, novamente ela. Indagou-se. Ora, novamente? Demorou a contacta-la, afinal eram muitos e todos muitos parecidos em essência. Mas ao reencontra-la foi direto e inquisidor.


(ele) - Não compreendo... O que faz aqui? Eu lhe vi a instantes atrás, em seu sonho. Não recordou ao acordar? Eu estava partindo e pedi para lhe falar. Para lhe dizer adeus. O que houve?

Ela sorriu, acariciou-lhe o rosto gentilmente, agradecida por mais aquele encontro...
(ela) - Não, eu não estava dormindo. Assim como você eu também estava de partida, e talvez, por alguma coincidência dessas que nós nunca entenderemos também pedi para lhe falar. Curiosamente, o meu último desejo foi o mesmo que o teu...

(ele) - Compreendo... Estávamos ambos nos despedindo, e por isso..

(ela) - Sim, eu não podia partir com a culpa me dilacerando, então me libertei de ti no meu último suspiro. Agora estou a um passo de seguir adiante. Enfim me sinto livre daquilo que me angustiava.

Houve um breve suspiro, seguido de um olhar cândido, apaziguador.
(ele) - Saber disso me deixa feliz... Então... Adeus, adeus mais uma vez.

E ela... Ela apenas sorriu antes de sumir para sempre de seus olhos. Atrás de si mais uma vez estava a Valkyria, que após observar aquele inusitado re-encontro não pode deixar de perguntar.


- Então... Conseguiu com tantas despedidas o que queria, enfim?

- Sim, mas... Não foram as despedidas que me fizeram entender o que  eu precisava. - Disse enquanto caminhava, já certo do seu lugar naquele novo mundo.

- Não?

- Não, Valkyria... Que sentimentos unilaterais acorrentam, e que o desapego sincero liberta, disso eu sempre soube. Na verdade, tratei de me recordar disso todos os dias, enquanto adormecia nas noites dos meus últimos dez anos.

- Então você sabia, sempre soube... Sabia que ela nunca voltaria, ainda assim esteve preso por querer... Era essa a sua escolha?

- Sempre foi, Valkyria... Sempre foi.




P.S.: Valkyrias são Deusas da Morte, que segundo a mitologia nórdica, são responsáveis por levar os guerreiros mortos para Valhalla, para lutar em Ragnarock (algo similar ao apocalipse).


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